Repita comigo: pirarucu
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kelner
rodolfo_viana
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Repita comigo: pirarucu
Os menos perspicazes diriam “é um corpo imóvel”. De fato, lembrava uma massa amorfa despejada por sobre o sofá ocreado cheirando a pêlo de gato. Mas não estava estático: Antonio cutucava o ouvido esquerdo com uma tampa de Bic verde. Mordia a língua, retesava a fronte, fechava o olho, tamanha sua vontade e seu regozijo. Por isso, ganiu um palavrão quando a campainha tocou.
O corpanzudo carteiro, trajado vulgarmente em amarelo e azul como tantos outros colegas de ofício, entregou a Antonio um envelope único. Em bordas douradas e cheia de firulas, em beletrismos escalafobéticos aos tempos atuais, a mensagem era um convite ao ex-filólogo. Tratava-se de uma chamada: tornar-se membro honorário dos chás semanais da ABL – Associação de Bairro de Lurdes.
- ABL é o calalho! - berrou em raiva aquele homem das letras, afugentando até mesmo o carteiro tão acostumado a cães raivosos. Lembrou-se de como fora ridicularizado por letrados por ter a língua presa. Durante um seminário sobre "o laissez-aller da oralidade lusófona no século XX", perdeu-se em todos os erres. Deixou a filologia de lado e passou a se dedicar aos impotentes soldados de chumbo - paixão de infância - e ao ato da profilaxia auricular com instrumentos levemente pontiagudos.
- Que foi, Tonico? - indagou a nonagenária Dona Adelaide, mãe de Antonio, ao vê-lo sentado no sofá de cor estapafúrdia, mãos postas no rosto, a se debulhar em prantos.
- Eles liem de mim! - soluçou o pobre homem - Eu nunca fui tão humilhado... Exceto quando uma ex-namolada de faculdade me pediu pala deixá-la me espancar...
Dona Adelaide, que só fazia pensar na felicidade de seu filho único e no mocotó daquela quarta, prometeu-lhe solução, nem que fosse preciso contratar um fonoaudiólogo, quiçá.
Aquela cena - os erres falhados, os risos, as vaias, o choro convulso - desarranjou o sono de Antonio (ou então foi o mocotó que não caiu bem). Naquela noite de poucas nuvens lá em cima e miados de cio cá embaixo, Tonico não dormiu.
Amanheceu. Ao abrir os olhos e se recobrar da péssima noite, Tonico bateu os olhos remelados no criado-mudo, e lá estava o convite da ABL. Irritou-se novamente. Precisava flautear, respirar um ar menos putrefeito. Antonio levantou-se, abriu a janela, e viu Maria lá embaixo, à espera. Para Tonico, aquele rosto era conhecido: fora a tal namorada de faculdade; para Dona Adelaide, que já estava na varanda com “entre, doutora, que meu Tonico está no quarto”, era apenas uma fonoaudióloga.
_____________________
nota: eu fui convidado pela revista piauí a escrever uma novela literária em dez meses com outros nove escritores que venceram seu concurso literário em 2007. o melhor texto de cada mês é publicado na revista. este foi o meu primeiro capítulo, e não venceu. [confesso que o texto vencedor, de ciço léo, é um primor e mereceu levar o caneco.] para que minha singela obra não acumule teias de aranha na gaveta de jacarandá talhado, ei-lo. mais sobre o concurso em http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=501.
O corpanzudo carteiro, trajado vulgarmente em amarelo e azul como tantos outros colegas de ofício, entregou a Antonio um envelope único. Em bordas douradas e cheia de firulas, em beletrismos escalafobéticos aos tempos atuais, a mensagem era um convite ao ex-filólogo. Tratava-se de uma chamada: tornar-se membro honorário dos chás semanais da ABL – Associação de Bairro de Lurdes.
- ABL é o calalho! - berrou em raiva aquele homem das letras, afugentando até mesmo o carteiro tão acostumado a cães raivosos. Lembrou-se de como fora ridicularizado por letrados por ter a língua presa. Durante um seminário sobre "o laissez-aller da oralidade lusófona no século XX", perdeu-se em todos os erres. Deixou a filologia de lado e passou a se dedicar aos impotentes soldados de chumbo - paixão de infância - e ao ato da profilaxia auricular com instrumentos levemente pontiagudos.
- Que foi, Tonico? - indagou a nonagenária Dona Adelaide, mãe de Antonio, ao vê-lo sentado no sofá de cor estapafúrdia, mãos postas no rosto, a se debulhar em prantos.
- Eles liem de mim! - soluçou o pobre homem - Eu nunca fui tão humilhado... Exceto quando uma ex-namolada de faculdade me pediu pala deixá-la me espancar...
Dona Adelaide, que só fazia pensar na felicidade de seu filho único e no mocotó daquela quarta, prometeu-lhe solução, nem que fosse preciso contratar um fonoaudiólogo, quiçá.
Aquela cena - os erres falhados, os risos, as vaias, o choro convulso - desarranjou o sono de Antonio (ou então foi o mocotó que não caiu bem). Naquela noite de poucas nuvens lá em cima e miados de cio cá embaixo, Tonico não dormiu.
Amanheceu. Ao abrir os olhos e se recobrar da péssima noite, Tonico bateu os olhos remelados no criado-mudo, e lá estava o convite da ABL. Irritou-se novamente. Precisava flautear, respirar um ar menos putrefeito. Antonio levantou-se, abriu a janela, e viu Maria lá embaixo, à espera. Para Tonico, aquele rosto era conhecido: fora a tal namorada de faculdade; para Dona Adelaide, que já estava na varanda com “entre, doutora, que meu Tonico está no quarto”, era apenas uma fonoaudióloga.
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nota: eu fui convidado pela revista piauí a escrever uma novela literária em dez meses com outros nove escritores que venceram seu concurso literário em 2007. o melhor texto de cada mês é publicado na revista. este foi o meu primeiro capítulo, e não venceu. [confesso que o texto vencedor, de ciço léo, é um primor e mereceu levar o caneco.] para que minha singela obra não acumule teias de aranha na gaveta de jacarandá talhado, ei-lo. mais sobre o concurso em http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=501.
rodolfo_viana- Número de Mensagens : 31
Idade : 43
Localização : dudinka [com três exércitos amarelos]
Data de inscrição : 24/01/2008
Re: Repita comigo: pirarucu
Realmente o texto do Ciço é muito bom. Espero que os próximos sejam tão bons quanto.
Continue tirando da gaveta de jacarandá seus textos e expondo-os aqui, gosto muito. A tampa da caneta Bic no ouvido... rsrsr.
Muito bom.
Continue tirando da gaveta de jacarandá seus textos e expondo-os aqui, gosto muito. A tampa da caneta Bic no ouvido... rsrsr.
Muito bom.
kelner- Colunista
- Número de Mensagens : 37
Idade : 47
Localização : Rio de Janeiro
Data de inscrição : 21/01/2008
Re: Repita comigo: pirarucu
Orlando! Tô pasmo! Você é um dos dez da piauí??
Uaaaaaaaaaaau! Eu pago um pau praqueles contos!
Uaaaaaaaaaaau! Eu pago um pau praqueles contos!
Re: Repita comigo: pirarucu
Gustavo escreveu:Orlando! Tô pasmo! Você é um dos dez da piauí??
Uaaaaaaaaaaau! Eu pago um pau praqueles contos!
não pasme, caro gustavo. meu texto foi o de abril de 2007 e, na minha opinião, um dos piores dentre os dez do ano passado.
tive sorte, isso sim.
rodolfo_viana- Número de Mensagens : 31
Idade : 43
Localização : dudinka [com três exércitos amarelos]
Data de inscrição : 24/01/2008
Re: Repita comigo: pirarucu
Isso que li foi bom demais (escusas por ainda comentar como se come uma fruta madura, eu melhoro).
nelsinho.66- Número de Mensagens : 10
Idade : 49
Localização : São Paulo - SP
Data de inscrição : 15/02/2008
Re: Repita comigo: pirarucu
nelsinho.66 escreveu:Isso que li foi bom demais (escusas por ainda comentar como se come uma fruta madura, eu melhoro).
hahahahaha
adoro carambola madura. alguém tem uma perdida aí no bolso? eu quero. rs...
obrigado, nelsinho. e ah!, bem-vindo ao fórum.
rodolfo_viana- Número de Mensagens : 31
Idade : 43
Localização : dudinka [com três exércitos amarelos]
Data de inscrição : 24/01/2008
Lindo
Concordo plenamente com você Vivian!! sobre o texto...claro!!
Pessoa- Admin
- Número de Mensagens : 23
Data de inscrição : 11/12/2007
Re: Repita comigo: pirarucu
Vivatchka escreveu:Seu texto é lindo como o homem na foto (não é uma cantada, sou casada, rsrs).
ahhh, vivatchka. muito obrigado.
rs...
Pessoa escreveu:Concordo plenamente com você Vivian!! sobre o texto...claro!!
pessoa, obrigado. concordo contigo: o texto é bonitinho; já o homem da foto... hahahaha
rodolfo_viana- Número de Mensagens : 31
Idade : 43
Localização : dudinka [com três exércitos amarelos]
Data de inscrição : 24/01/2008
Re: Repita comigo: pirarucu
Você pode falar que tá ruim, mas, o seu e o do Ciço foram os únicos dessa rodada que me prenderam a atenção e me fizeram enxergar e sentir como os personagens. Verdade verdade mesmo.
o segundo é melhor
Gustavo escreveu:Você pode falar que tá ruim, mas, o seu e o do Ciço foram os únicos dessa rodada que me prenderam a atenção e me fizeram enxergar e sentir como os personagens.
pois ó, confesso: a continuação deste primeiro capítulo está muito melhor. se se sentiu como os personagens neste, no segundo capítulo se sentiria mais ainda. deixaria de viver sua vida de gustavo e passaria a viver a vida de antônio.
e afinal, é do capítulo dois que começa a saga do filólogo de língua "plesa". rs...
abraços e obrigado.
ps. convenhamos!, o do ciço é estupidamente superior ao meu. reconheço textos bons. e reconheço quando um escrito é melhor que o meu. o do ciço é. adorei escrever a seqüência de "a velha debaixo da cama". aguardem março e leiam no site [ou na revista, caso ele seja escolhido como o melhor da rodada].
rodolfo_viana- Número de Mensagens : 31
Idade : 43
Localização : dudinka [com três exércitos amarelos]
Data de inscrição : 24/01/2008
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