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Artigo - Stevenson vê o lado obscuro do homem em O Médico e o Monstro

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Mensagem  Cyber Qua Fev 20, 2008 1:21 pm

Em O Médico e o Monstro, Robert Louis Stevenson construiu uma fábula sobre a dubiedade da moral puritana e do próprio inconsciente humano.
Caso alguém seja convidado a desenhar um pirata – um daqueles ferozes saqueadores marítimos que aterrorizavam os navegantes nos séculos 16 e 17 –, é quase certo que se esforçará, por mais pífios que sejam seus dotes artísticos, por rabiscar a figura de um homem de aspecto cruel, provavelmente usando um tapa-olho, com uma perna de pau, e um papagaio empoleirado no ombro. Esse é o estereótipo de pirata que povoa o imaginário popular. E o grande responsável por isso foi Robert Louis Balfour Stevenson, escritor escocês nascido em Edimburgo, em 1850.
Stevenson foi o criador de Long John Silver, personagem de A Ilha do Tesouro, cuja primeira edição data de 1883. As qualidades da obra tornaram-na um grande sucesso de público e um clássico absoluto da literatura infanto-juvenil, o que fez do velhaco Long John o paradigma dos piratas de ficção. De saúde frágil, padecendo de uma suposta tuberculose, Stevenson passou boa parte da infância recluso em sua casa, sob os cuidados de uma enfermeira particular. Fervorosa presbiteriana, ela distraía o menino contando-lhe histórias mórbidas sobre os covenanters (mártires presbiterianos escoceses), lendas bíblicas, e novelas baratas cheias da austera moral vitoriana. Tudo com a devida aprovação dos pais de Stevenson, adeptos de um rígido puritanismo.
Fascínio pelo mar
Movida pelo precário estado de saúde do garoto, a família Stevenson procurou um lugar de clima ameno e ar saudável: o litoral. O mar exerceu um grande fascínio sobre a índole irrequieta e sonhadora do jovem Robert, oferecendo-lhe uma sedutora promessa de liberdade em contrapartida aos limites impostos pela rígida disciplina puritana da família. Ao entrar na Universidade de Edimburgo, em 1867, Robert Louis Stevenson começou a se desvincular definitivamente dos laços familiares. Medíocre estudante de Engenharia, empenhou-se muito mais em praticar boêmia. Passou a dedicar-seà Literatura, escrevendo diversos ensaios, poemas e novelas. Impetuoso e romântico, Stevenson apaixonou-se por uma mulher casada. Juntou-se à tripulação de um navio para segui-la até os EUA e convencê-la a separar-se do marido. Durante a viagem, desenhando um mapa fictício para entreter seu enteado, ocorreu-lhe a idéia de uma história sobre piratas, que veio a resultar em A Ilha do Tesouro. Amante do mar e andarilho por natureza, Robert Louis Stevenson empreendeu muitas viagens, que lhe renderam material para diversos contos e novelas. A bordo de um veleiro, aventurou-se por vários arquipélagos do Pacífico Sul, coletando histórias e lendas nativas que serviram de base para outros tantos textos. De espírito livre e pouco afeito a convenções, Stevenson era grande admirador de Henry David Thoreau (1817-1862), e foi bastante influenciado pela filosofia libertária do célebre autor de A Desobediência Civil. Em vários de seus poemas, Stevenson destilou seu desprezo pelos padrões morais da sociedade puritana, como no cáustico Hail! Childish Slaves of Social Rules! (em Português, “Salve! pueris escravos das regras sociais!”).

Publicou em 1886 uma obra com a qual não afrontava tão explicitamente aos ideais da burguesia vitoriana: a novela The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (O Médico e o Monstro). Foi o livro que lhe rendeu maior notoriedade, inscrevendo definitivamente seu nome entre os imortais das letras.
Lado negro
A famosa história do doutor Jekyll e senhor Hyde é uma mostra exemplar da habilidade artesanal de Stevenson ao concatenar um texto. Com elementos de forte impacto dramático, a novela de Stevenson já ganhou várias adaptações cinematográficas, e poucas são as pessoas que, mesmo sem ter jamais lido a obra, nunca ouviram menção dos notáveis personagens. De aparente simplicidade, o texto possibilita no entanto vários níveis de leitura. Suas qualidades como novela de suspense noir são evidentes.A ambientação da trama, que nos conduz às vielas da cinzenta e enevoada Londres do século 19, garante o clima de tensão e expectativa característico de uma boa história policial. Há ainda a sinistra e enigmática figura de Edward Hyde, vilão ímpar, que agrega elementos grotescos e estranhos, adicionando um interesse peculiar à novela.
Mas há sutilezas no texto de Stevenson que remetem a outros níveis de interpretação e apreciação. O doutor Henry Jekyll, o médico, é o estereótipo do homem bemsucedido em sua vida profissional e particular, verdadeira síntese das aspirações burguesas: é rico, elegante, bem-apessoado, virtuoso, herdeiro de boa família, culto, e benquisto por todos. Quanto ao senhor Hyde, o monstro, é seu oposto em todos os sentidos: fisicamente mal proporcionado, ríspido, deselegante, de ocupação obscura, e origem duvidosa. Mas a qualificação de Hyde como “monstro” não se aplica propriamente ao seu aspecto físico, que embora seja desagradável e grotesco, não apresenta nenhuma deformidade evidente. Há em seu semblante alguma coisa imprecisa, uma anomalia sutil e perversa, que causa repulsa em quem o vê, como descreve um personagem:
Não é fácil descrever. Tinha algo de falso na aparência, muito de desagradável, alguma coisa de profundamente odioso. Nunca vi homem tão antipático, nem sei bem dizer a razão. Parecia ser vítima de alguma deformação: era a sensação que dava, ainda que não possa especificar em que parte do corpo. Uma figura extraordinária, e no entanto não sei especificar de que maneira. Não, meu amigo, de modo nenhum. É-me impossível descrevê-lo. E não por falta de memória. Sou capaz de reconhecê-lo neste exato momento.
Em O Médico e o Monstro, trad. de Pietro Nassetti (Martin Claret, 2002).
Desejos reprimidos
O que torna o texto particularmente interessante é o fato de que o hediondo senhor Hyde não é outro senão o nobre doutor Jekyll sob efeito de uma droga descoberta por este. O monstro é a antítese do cidadão exemplar, mas deriva dele. O próprio nome Hyde (semelhante ao verbo hide, “esconder”) faz alusão a algo que se oculta, subjacente à manifesta aparência de normalidade aceitável. O maléfico e perverso Hyde é a manifestação física dos desejos reprimidos pela polidez civilizada do venerável Jekyll. O próprio médico reconhece isso na carta em que explica a um amigo a origem do misterioso monstro:

Além disso, esse lado mau – que suponho seja a parte mortal do homem – deixava-me no corpo uma marca de deformidade e degenerescência. E contudo, quando olhava no espelho para essa feia imagem, não sentia nenhuma repugnância, antes um alvoroçado prazer. Pois se era eu também! Portanto, era natural e humano. Aos meus olhos surgia um reflexo mais vivo do espírito, dir-se-ia mais expressivo e original do que a imperfeita feição que eu até aí me acostumara a chamar minha.
O aparentemente virtuoso Henry Jekyll admite que se compraz da liberdade de ação e da imunidade que lhe proporciona o disfarce de Edward Hyde:

Por essa época não adquirira ainda aversão à aridez da vida de estudo. Continuaria alegremente disposto por mais um tempo; e como as minhas distrações não eram – para dizer o mínimo – muito dignificantes, e eu era não só muito conhecido e altamente considerado, como também caminhava para uma idade respeitável, essa incoerência da minha vida começava a tornar-se importuna. Foi nessas condições que aquele novo poder me tentou até me tornar seu escravo. Bastaria beber um copo da droga para me libertar do corpo do médico célebre e assumir, como um disfarce perfeito, a figura de Edward Hyde.

Liberto das peias do recato e do temor ao escândalo e à reprovação pública sob tão perfeita caracterização, o exemplar doutor Jekyll podia dar vazão aos seus mais recônditos e inconfessáveis desejos. Essa condição excepcional lhe permitia fugir da enfadonha, ainda que confortável, situação de cidadão modelo.
Em sua fábula noir, Stevenson tece uma crítica sutil ao estilo de vida da sociedade vitoriana, em que havia excessiva valorização da aparência e das convenções em detrimento da essência. Há no texto uma sugestão subliminar de que, ao reprimir o impulso de sua libido a favor de um comportamento socialmente aceitável, o homem civilizado teria rejeitado algo de natural e primitivamente essencial à natureza humana. O que Sigmund Freud explicaria brilhantemente, alguns anos mais tarde.
O Médico e o Monstro tem inegáveis qualidades como novela de suspense detetivesco, que aproximam a obra de alguns contos de Edgar Allan Poe (Os Crimes da Rua Morgue e A Carta Roubada, por exemplo). Mas o escritor escocês vai além, ao explorar os desvios do comportamento humano e propor outras possibilidades de reflexão.

Robert Louis Stevenson foi um escritor profícuo, especialmente a partir de 1882, quando produziu inúmeros ensaios, novelas, contos e poemas. Ele, que viveu sempre ameaçado pela tuberculose, morreu devido a uma hemorragia cerebral, em 3 de dezembro de 1894. No entanto, apesar da infância puritana, aproveitou a vida, pautada pelo espírito romântico e aventureiro. Navegou pelas ilhas do Pacífico Sul, apaixonou-se pela exuberância da natureza e pelas culturas locais, e em 1888 adotou como seu lar a ilha de Samoa, na Polinésia. Lá recebeu dos nativos o apelido de Tusitala,“o contador de histórias”

(Revista Discutindo Literatura - Edição 11)
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