Quase volta à ilha
3 participantes
Página 1 de 1
Quase volta à ilha
A escada é a analogia de uma vida plena, sem os grilhões do aferro daquela mulher: cada um dos degraus carcomidos não leva ao desvão apenas, mas ao prometido céu dos homens, sejam eles ainda imberbes como Antônio ou não mais. No sótão da lúgubre garçonnière, Antônio rema poeira e teia da sua frente; faz-se náufrago, de fato, a golfar, a agonizar, a estender aos céus, em meio à tormenta, uma mão desesperada.
Uma mão desesperada. A mesma que esbarrou em algo na penumbra daquele insalubre lugar. Murmura um palavrão ao notar a luz queimada. Tateia os dedos em biombos que ladeiam o lugar abochornado. Antônio toca os tabiques de compensado e sente as lascas da superfície farpada entrar na pele. Diante da dor, porém, segue seu rumo reto para fugir daquela vida sinuosa.
- Que faz aí, homem de Deus? Vamos perder o orvalho madrugador das romãzeiras! – indaga indigna Maria de Maria que, impacientada pela omissão de seu mancebo depois de tanto ganir e gralhar seu nome na entrada, se cala e entra. Ela traz consigo as correspondências que encontrara no capacho inscrito “Aqui mora uma família feliz”.
Antônio não se faz responder. Desvairado, o amásio segue sua trilha rente aos tapumes. Aquela dor das farpas na carne compensaria, e nada seria se comparada à angústia latente de adormecer – ou tentar, ao menos – toda noite sob a imaculada cama do falecido Coronel, nos tacos desalinhados do chão grená.
Antônio sente por entre os dedos grossos e calejados da vida pregressa, na escureza do sótão já íntima de suas mãos, o que procura. Sorri ladinamente diante de um pano. Mesmo sem enxergar, sabe o que é: uma camisa furta-cor, usada na boate L'Île de La Tentation, nos idos de “Conan, o bárbaro”, alter ego de Antônio antes de viver em pecado com Maria de Maria, quando era apenas um garoto pobre que revirava xepas durante o dia e rebolava no queijo à noite.
Com a camisa em riste, Antônio passa por Maria de Maria sem lhe dedicar um olhar piedoso sequer. Já despido de concupiscência, mostra-se disposto a se despir mais e mais a cada noite a partir de então. Seria de novo um homem digno, trajado apenas com a velha sunga enodoada. Deixaria o bangalô para voltar à boate.
- Marque as horas de minha partida. É agora que você me perde. Culpe os tacos do piso, o orvalho das romãzeiras e a si mesma, Maria. Culpe o fantasma do Coronel – sussurra à mulher um irascível Antônio, todo dono de si, esquecendo-se por um instante que devia a ela gratidão desde uma certa noite regada a mojitos e altas doses de antiinflamatórios. Diante da afronta, Maria se mantém austera.
- Tome – diz a mulher, entregando a seu futuro ex-amásio as correspondências. – Estavam no capacho.
Ele, ainda esboçando um sorriso nos lábios bem conhecidos pelo corpo de Maria de Maria, passa os olhos nos envelopes. Um a um. Para no quinto. Lê o remetente. Perde o viço. Muda a feição Antônio, como quem muda de idéia, como quem decide ir e acaba por ficar.
________________________________________________
nota: este conto é o segundo capítulo da novela literária "a velha debaixo da cama", publicada mensalmente pela revista piauí. como o texto acima foi escolhido o vencedor do mês de março, foi publicado na edição 18 da revista, e no site [http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=517]. o primeiro capítulo, de ciço léo, pode ser lido na edição 17, ou também no site [http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=501&anteriores=1&anterior=22008].
Uma mão desesperada. A mesma que esbarrou em algo na penumbra daquele insalubre lugar. Murmura um palavrão ao notar a luz queimada. Tateia os dedos em biombos que ladeiam o lugar abochornado. Antônio toca os tabiques de compensado e sente as lascas da superfície farpada entrar na pele. Diante da dor, porém, segue seu rumo reto para fugir daquela vida sinuosa.
- Que faz aí, homem de Deus? Vamos perder o orvalho madrugador das romãzeiras! – indaga indigna Maria de Maria que, impacientada pela omissão de seu mancebo depois de tanto ganir e gralhar seu nome na entrada, se cala e entra. Ela traz consigo as correspondências que encontrara no capacho inscrito “Aqui mora uma família feliz”.
Antônio não se faz responder. Desvairado, o amásio segue sua trilha rente aos tapumes. Aquela dor das farpas na carne compensaria, e nada seria se comparada à angústia latente de adormecer – ou tentar, ao menos – toda noite sob a imaculada cama do falecido Coronel, nos tacos desalinhados do chão grená.
Antônio sente por entre os dedos grossos e calejados da vida pregressa, na escureza do sótão já íntima de suas mãos, o que procura. Sorri ladinamente diante de um pano. Mesmo sem enxergar, sabe o que é: uma camisa furta-cor, usada na boate L'Île de La Tentation, nos idos de “Conan, o bárbaro”, alter ego de Antônio antes de viver em pecado com Maria de Maria, quando era apenas um garoto pobre que revirava xepas durante o dia e rebolava no queijo à noite.
Com a camisa em riste, Antônio passa por Maria de Maria sem lhe dedicar um olhar piedoso sequer. Já despido de concupiscência, mostra-se disposto a se despir mais e mais a cada noite a partir de então. Seria de novo um homem digno, trajado apenas com a velha sunga enodoada. Deixaria o bangalô para voltar à boate.
- Marque as horas de minha partida. É agora que você me perde. Culpe os tacos do piso, o orvalho das romãzeiras e a si mesma, Maria. Culpe o fantasma do Coronel – sussurra à mulher um irascível Antônio, todo dono de si, esquecendo-se por um instante que devia a ela gratidão desde uma certa noite regada a mojitos e altas doses de antiinflamatórios. Diante da afronta, Maria se mantém austera.
- Tome – diz a mulher, entregando a seu futuro ex-amásio as correspondências. – Estavam no capacho.
Ele, ainda esboçando um sorriso nos lábios bem conhecidos pelo corpo de Maria de Maria, passa os olhos nos envelopes. Um a um. Para no quinto. Lê o remetente. Perde o viço. Muda a feição Antônio, como quem muda de idéia, como quem decide ir e acaba por ficar.
________________________________________________
nota: este conto é o segundo capítulo da novela literária "a velha debaixo da cama", publicada mensalmente pela revista piauí. como o texto acima foi escolhido o vencedor do mês de março, foi publicado na edição 18 da revista, e no site [http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=517]. o primeiro capítulo, de ciço léo, pode ser lido na edição 17, ou também no site [http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=501&anteriores=1&anterior=22008].
rodolfo_viana- Número de Mensagens : 31
Idade : 43
Localização : dudinka [com três exércitos amarelos]
Data de inscrição : 24/01/2008
Re: Quase volta à ilha
Contos sempre maravilhosos, que arrastam os olhos, os impedindo de fugir! Sempre um gesto prosaico que se revela depois um ato de heroísmo, sempre um final absolutamente perfeito!
Re: Quase volta à ilha
Rodolfo; gostei muito da continuação que você deu ao primeiro capítulo (escrito pelo Ciço)... lendo os outros textos fui obrigado a concordar com as palavras do "editor" do site; você "foi quem deu melhor seguimento à trama e obretudo, foi quem abriu o
leque mais amplo de possibilidades para a continuação do enredo". Achei que a Juliana cometeu alguns "excessos" e o Lucas quase chegou lá; mas nada que se comparasse ao seu texto... agora a dúvida foi a seguinte: como uma pessoa que fica R$ 800,00 reais mais rica, não convida os amigos para um churrasco... rsrsrsrs
leque mais amplo de possibilidades para a continuação do enredo". Achei que a Juliana cometeu alguns "excessos" e o Lucas quase chegou lá; mas nada que se comparasse ao seu texto... agora a dúvida foi a seguinte: como uma pessoa que fica R$ 800,00 reais mais rica, não convida os amigos para um churrasco... rsrsrsrs
Re: Quase volta à ilha
Cyber escreveu:como uma pessoa que fica R$ 800,00 reais mais rica, não convida os amigos para um churrasco... rsrsrsrs
rapaz, acredita que ainda não vi a cor do dinheiro?
e olha que esses oitocentão iam ser bem investidos numa churrascada com os amigos, num corselete e numa noitada despudorada com minha mulher...
ps. não, eu não uso corselete. só aos fins de semana. e depois de tequila. muita.
ps2. não me olhe torto!
rs...
abraços
rodolfo_viana- Número de Mensagens : 31
Idade : 43
Localização : dudinka [com três exércitos amarelos]
Data de inscrição : 24/01/2008
Página 1 de 1
Permissões neste sub-fórum
Não podes responder a tópicos